Qual a diferença entre segurança hídrica e resiliência hídrica?

Leia a análise de Mara Ramos e Jerson Kelman.
Jerson Kelman

Jerson Kelman

Engenheiro civil (EE-UFRJ, 1971), mestre em hidráulica (M.Sc. COPPE-UFRJ, 1973), doutor em Hidrologia e Recursos Hídricos (Ph.D., Colorado State University, 1976) e Livre Docente (EE-UFRJ, 1985).

Mara Ramos

Mara Ramos

Tecnóloga em obras hidráulicas, engenheira civil, MSc em recursos hídricos e MBA em saneamento ambiental.

As mudanças climáticas têm causado o aumento da frequência e da intensidade de eventos hidrológicos extremos (secas e cheias), com relevante impacto no setor de saneamento. Nas secas, a queda de vazão dos rios prejudica o abastecimento de água devido à falta de quantidade e/ou de qualidade da água dos mananciais. É também quando a temperatura tende a ficar elevada, o que induz ao maior consumo de água e à proliferação de algas nos reservatórios de água bruta, agravando o problema. Nas cheias, há risco de alagamento de elevatórias e de estações de tratamento, tanto de água quanto de esgoto. Além de blecautes de energia elétrica, com impacto sobre o funcionamento das elevatórias e, portanto, o transporte tanto de água quanto de esgoto. Não bastassem esses efeitos adversos, a não-estacionariedade hidrológica causada pela mudança climática dificulta a construção de cenários que subsidiem o ajuste entre a oferta e demanda de água.

A Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (SABESP), assim como outras concessionárias, vem enfrentando diversos desses desafios nos últimos anos. Com a experiência na operação e prestação de serviços para a Região Metropolitana de São Paulo, uma das maiores áreas urbanas do mundo, implantou medidas para aumentar tanto a segurança quanto a resiliência dos sistemas operados.

A segurança hídrica é em geral, mas não exclusivamente, medida pela probabilidade do sistema de abastecimento funcionar sem falha num ano qualquer, por indisponibilidade de água nos mananciais. Até a seca de 2014-2015, a SABESP adotava, para efeito de planejamento, a segurança hídrica de 95%. Depois, passou a adotar 98%. Significa que a probabilidade de faltar água num ano qualquer devido a um problema hidrológico é de 100-98 = 2% (ou 0,02). Ou, equivalentemente, o tempo de recorrência é igual a 1/0,02 = 50 anos. Essa expressão – tempo de recorrência – utilizada pelos hidrólogos para designar o intervalo médio entre os sinistros – no caso, falta de água bruta nos mananciais –  deve ser utilizada com cautela porque às vezes induz a interpretações absurdamente equivocadas entre leigos, do tipo “pelo menos um problema igual a esse, só voltará a acontecer daqui a 50 anos”.

A SABESP poderia ter optado por uma segurança hídrica ainda maior, por exemplo, 99,9% (tempo de recorrência de 1000 anos)? Claro que sim! Porém, isso implicaria num altíssimo volume de investimentos que forçaria a tarifa para um nível incompatível com a capacidade de pagamento da população.

As  concessionárias de serviços públicos e as agências de regulação deveriam ser transparentes na divulgação dos riscos de desabastecimento e das razões econômicas que impedem que se alcance a utópica segurança hídrica de 100%.

A resiliência hídrica também é um conceito-chave para a gestão da água. É a capacidade de um sistema de recursos hídricos de se adaptar, resistir e se recuperar da ocorrência de eventos extremos (secas, enchentes, tempestades) e mudanças de longo prazo (aumento do nível do mar, desertificação). Essa abordagem inclui implementar estratégias para ajustar sistemas e infraestruturas a novas condições climáticas. Por exemplo, construir infraestrutura nas cidades para resistir às inundações, como é o caso de piscinões e diques. Também, incorporar as previsões climáticas no desenvolvimento de políticas públicas, para a agricultura e, principalmente, planejamento urbano.

Na crise hídrica de 2014-2015, a SABESP seguiu o ensinamento de resiliência do primeiro-ministro britânico do século XIX, Benjamin Disraeli: “torça pelo melhor, mas esteja preparado para o pior”. A torcida era pelo fim da estiagem. E o “estar preparado para o pior” se traduziu em intensíssimo trabalho no sistema de distribuição de água para garantir a continuidade de suprimento nos pontos críticos – por exemplo, grandes hospitais – mesmo no cenário de continuidade da seca.  

No contexto da gestão dos recursos hídricos, segurança hídrica e resiliência hídrica são conceitos inter-relacionados, porém distintos. Enquanto o foco para a segurança hídrica está na disponibilidade e gestão de água para atender demandas atuais e futuras (com garantias estatísticas), para a resiliência o foco está na capacidade de adaptação e recuperação após a ocorrência de crises. Ambos são fundamentais para garantir o acesso sustentável à água de qualidade.

A Organização das Nações Unidas (ONU) utiliza conceitos mais completos e complexos, que também são adotados pela Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA): uma população desfruta de segurança hídrica se tem acesso sustentável a quantidades adequadas de água, de qualidade aceitável para sustentar os meios de subsistência, o bem-estar humano e o desenvolvimento socioeconômico, ao mesmo tempo que consegue prevenir riscos relacionados à água e preservar ecossistemas em um clima de paz e estabilidade política. A segurança hídrica neste contexto é avaliada em quatro dimensões, sendo a resiliência uma delas. As outras três são humana, econômica e ecossistêmica.
Quantificar segurança hídrica e resiliência hídrica requer o uso de indicadores que avaliem diferentes aspectos de disponibilidade, qualidade, gestão e resposta aos riscos. Esses indicadores são métricas que ajudam a monitorar, comparar e planejar ações para a gestão sustentável da água.

Os indicadores de segurança hídrica buscam medir se há acesso suficiente à água de qualidade para atender às necessidades humanas, ambientais e econômicas.

Em adição à probabilidade do sistema de abastecimento funcionar sem falha num ano qualquer, já explicada, há outros indicadores:

1. Disponibilidade de Recursos Hídricos
• Índice de Escassez Hídrica (Falkenmark): Quantidade de água disponível por pessoa por ano (m³/pessoa/ano). Valores abaixo de 1.700 m³/pessoa/ano indicam escassez.
• Razão Demanda/Disponibilidade: Percentual da água renovável total que é retirada. Valores acima de 40% podem indicar pressão hídrica.

2. Qualidade da Água
• Índice de Qualidade da Água (IQA): Combina parâmetros como oxigênio dissolvido, turbidez e presença de poluentes químicos.
• Concentração de Poluentes Críticos: Medição de cianobactérias, nitratos, fosfatos ou metais pesados em corpos d’água.

3. Acesso à água e indicadores de atendimento
• Proporção da População com Acesso a Água Potável Segura: Medida pela OMS e UNICEF no contexto dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). Medida também conforme a regulação local vigente.
• Cobertura de Infraestrutura de Saneamento: Percentual da população com acesso a sistemas de coleta e tratamento de esgoto.

Os indicadores de resiliência hídrica avaliam a capacidade de um sistema de recursos hídricos de se adaptar, resistir e se recuperar de choques e estresses. Alguns exemplos incluem:

1. Capacidade de Adaptação
• Diversidade de Fontes de Água e Sistemas: Percentual de água proveniente de diferentes fontes (superficial, subterrânea, dessalinização, reutilização).
• Integração de Mananciais e Sistemas
• Índice de Eficiência no Uso da Água: Relaciona a quantidade de água usada com o valor gerado.

2. Capacidade de Recuperação
• Tempo de Recuperação Pós-Evento: Período necessário para restabelecer o abastecimento após uma crise (ex.: seca ou enchente).
• Redundância da Infraestrutura: Presença de sistemas alternativos para abastecimento e tratamento de água em caso de falhas.

3. Risco e Robustez do Sistema
• Índice de Vulnerabilidade a Eventos Extremos: Mede a exposição e sensibilidade de um sistema hídrico a eventos climáticos como secas e enchentes.
• Proporção de Investimentos em Infraestrutura Resiliente: Percentual do orçamento dedicado a soluções como diques, reservatórios e tecnologias de monitoramento.

4. Planejamento e Governança
• Índice de Capacidade Institucional: Avalia políticas públicas, regulamentações e gestão integrada dos recursos hídricos.
• Participação Social na Gestão da Água: Percentual da população envolvida em decisões locais ou regionais sobre recursos hídricos.

Conclusão:
Os conceitos de segurança hídrica e resiliência hídrica são fundamentais para enfrentar os desafios impostos pela crescente demanda por água e pelos impactos das mudanças climáticas. Independentemente da abordagem adotada, a integração desses dois conceitos é a chave para construir sistemas hídricos bem concebidos.Indicadores quantitativos e qualitativos desempenham relevante papel nesse processo, oferecendo uma visão abrangente para avaliar a segurança e a resiliência hídrica. Esses indicadores estão presentes em relatórios de sustentabilidade, planejamentos governamentais e no monitoramento dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, especialmente o ODS 6 (Água e Saneamento). A utilização combinada de múltiplos indicadores possibilita o desenvolvimento de estratégias equilibradas, que conciliem prevenção e recuperação frente aos desafios hídricos.As agências reguladoras precisam rever os incentivos econômicos para estimular as prestadoras de serviços públicos a realizar investimentos para enfrentar as mudanças climáticas que até a alguns anos atrás seriam considerados imprudentes e, portanto, excluídos da base de remuneração regulatória.

Referências:


Jerson Kelman é engenheiro civil (EE-UFRJ, 1971), mestre em hidráulica (M.Sc. COPPE-UFRJ, 1973), doutor em Hidrologia e Recursos Hídricos (Ph.D., Colorado State University, 1976) e Livre Docente (EE-UFRJ, 1985). Foi professor (tempo parcial) de recursos hídricos da COPPE-UFRJ por 47 anos. Foi um dos criadores, diretor e presidente da ABRH (Associação Brasileira de Recursos Hídricos). Coordenou a força-tarefa designada pelo presidente Fernando Henrique Cardoso para investigar e explicar o racionamento de energia elétrica de 2001.É autor de dois livros, “Cheias e Aproveitamentos Hidroelétricos ” (1983) e “Desafios do Regulador” (2009).
Dentre suas atividades profissionais destacam-se:
Presidente da SABESP (2015-2018).
Interventor da ENERSUL (2013-2014).
Presidente do Grupo Light (2010-2012).
Diretor-Geral da ANEEL , Agência Nacional de Energia Elétrica (2005-2008).
Presidente da ANA, Agência Nacional de Águas (2001-2004).

Mara Ramos é tecnóloga em obras hidráulicas, engenheira civil, MSc em recursos hídricos e MBA em saneamento ambiental.
Com experiência no setor de saneamento, na gestão e regulação de recursos hídricos, atua, coordena e gerencia projetos multidisciplinares relacionados ao planejamento, gestão e sustentabilidade dos recursos hídricos e saneamento.
Atualmente ocupa a função de Assistente Executiva da SABESP, além de docente convidada das disciplinas Segurança Hídrica, ESG e Sustentabilidade da FESP-SP.
É representante junto ao Conselho da ABES-SP, Co-Chair do Grupo Especialista em Segurança Hídrica da IWA, membro do Conselho Estratégico da IWA e membro suplente no Conselho Mundial da Água.
Dentre suas atividades profissionais destacam-se:
Superintendente do DAEE (2023-2024);
Gerente de recursos hídricos metropolitanos da SABESP (2016-2020)

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