SANEAS EDIÇÃO 83 ESPECIAL ÁGUAS RESIDUAIS
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A Rotária do Brasil, de acordo com Sebastian, trouxe também um novo enfoque para o tema que pode ser interessante para o Brasil: a comercialização de esgoto bruto para fins de reúso. O projeto inovador foi realizado no Peru. Confira entrevista completa abaixo:
Revista Saneas – Qual a relevância do biogás como fonte alternativa de energia para o setor de esgotamento sanitário?
Sebastian Rosenfeldt – Do ponto de vista econômico, o aproveitamento energético proporciona, uma vez confirmada a viabilidade econômica para o caso específico, economia relacionada ao custo da energia elétrica. De acordo com o 25º Diagnóstico SNIS dos Serviços de Água e Esgoto, o custo de energia elétrica para as empresas de saneamento em 2019 foi de R$ 7,1 bilhões, o que corresponde a 15,4% de todo o custo operacional e representa o segundo maior gasto depois das despesas com recursos humanos. Com base em estudos próprios, temos um potencial de geração de 428 GWhel/a de energia por ETEs com digestores anaeróbios de lodo e reatores UASB no Brasil, sob a premissa de apresentar viabilidade econômica. Além de contribuir para reduzir os custos com energia no setor, o aproveitamento de biogás promove a diversificação da matriz energética.
Na Alemanha, por exemplo, onde já há quantidade significativa de plantas de aproveitamento energético de biogás instaladas, o setor de esgotamento sanitário aumentou a produção de energia elétrica de 633 GWh, em 1998, para 1.489 GWh no ano de 2021 (Instituto Federal de Estatística – Statistisches Bundesamt). No caso da Alemanha, 81% do biogás é utilizado para geração de energia elétrica, enquanto 7% é transformado em energia térmica.
A relevância relacionada a aspectos ecológicos pode ser atribuída à redução de emissões de gases de efeito estufa (GEE).
Revista Saneas – Quais os principais desafios para o aproveitamento do biogás?
Sebastian Rosenfeldt – O desafio principal é a aceitação das tecnologias pelos tomadores de decisão envolvidos no processo que ainda está comprometida por dúvidas relacionadas à viabilidade econômica. Essas dúvidas são alusivas à relação incerta entre o custo do projeto, principalmente operacional, e seu benefício comercial. Há uma série de trabalhos científicos teóricos e alguns envolvendo resultados parciais de plantas em escala real. Além disso, há experiência em cerca de 10 ETEs no Brasil, que adotaram, na prática, estratégias variadas em relação a formas (elétrica, térmica, cogeração, combustível veicular) e tecnologias (motor-gerador, microturbinas, secadores de lodo) de aproveitamento energético de biogás, cujas experiências não foram amplamente divulgadas e publicamente documentadas. A não divulgação dessas experiências contribui para a desconfiança sobre a viabilidade técnica no contexto brasileiro, antes mesmo de se pensar sobre uma possível viabilidade econômica.
Um outro ponto crítico, que talvez possa ter contribuído com resultados que não tenham atendido às expectativas das poucas plantas existentes no Brasil, são os desafios administrativos e/ou operacionais. Percebemos, de forma subjetiva, uma certa fragilidade em relação à manutenção preventiva e corretiva. A fragilidade pode ser relacionada à falta de mão-de-obra especializada própria para determinada tecnologia, tornando necessária a contratação de terceiros. Além disso, existem dificuldades quanto à gestão de aquisição de peças de reposição que, em caso de avarias de peças de origem estrangeira, podem causar dificuldade para evitar paradas prolongadas.
Por fim, observamos também que o fato de não somente tratar o esgoto, mas também captar e aproveitar o biogás que se forma neste processo, apresenta uma mudança de paradigma com relação aos objetivos do serviço de saneamento; mudança esta que, para ocorrer, demanda tempo, capacitação, e também a difusão de boas práticas. Para saber mais acesse o livro “Barreiras de Propostas de Soluções”.
Revista Saneas – A implementação do biogás é sempre amigável ao clima e sem danos? E a viabilidade financeira?
Sebastian Rosenfeldt – Com relação à adoção da captação e queima do biogás gerado não há dúvida de que essa prática conjunta contribua para a preservação do meio ambiente. Com base em estudos próprios, uma ETE com reator UASB seguido pelo processo de lodo ativado consegue reduzir as emissões de GEE em aproximadamente 50% ao coletar e queimar o biogás. É importante ressaltar que a norma brasileira NBR 12.209 recomenda a queima de biogás em todas as ETEs onde não haja o seu aproveitamento.
Já o aproveitamento energético de biogás proporciona reduções de emissões de GEE menos expressivas, principalmente devido ao fator de emissão de energia elétrica do Sistema Interligado Nacional (SIN) do Brasil, que é de apenas 78,8 kgCO2-eq/MWh. Contudo, o aproveitamento energético do biogás é muito recomendável sob o ponto de vista ambiental, aumentando a autossuficiência energética das ETEs.
Com relação à viabilidade econômica, esta depende de diversos fatores que devem ser avaliados para cada empreendimento, começando pela forma de aproveitamento e comercialização do biogás. No caso da geração de energia elétrica para autoconsumo, a viabilidade econômica está estreitamente relacionada à tarifa de energia elétrica da distribuidora que atende a ETE. As tarifas praticadas pelas distribuidoras apresentam grande variação, o que pode afetar a viabilidade do empreendimento.
Em geral, a viabilidade econômica para empreendimentos dessa natureza aumenta com o seu porte. Em um estudo realizado para a minha tese de doutorado (que ainda está em andamento), em situação pré-pandêmica caracterizada por custos menores, foi verificado que a escala mínima para a geração de energia elétrica em uma ETE, com base no biogás gerado em reatores UASB em condições regulares, varia de cerca de 80 mil e 170 mil habitantes, dependendo da tarifa de energia. Para uma tarifa de energia elétrica mediana, estimam-se taxas internas de retorno de aproximadamente 9% para uma potência instalada de 160 kWel, 20 % para 450 kWel, e 33 % para 1.000 kWel.
É fundamental ter clareza sobre o real potencial de geração de biogás e a parcela tecnicamente aproveitável na planta onde se pretende instalar um sistema de aproveitamento. Isso se deve ao fato de que pode haver grande divergência entre o montante dessa parcela estimado e as condições reais. Além da perda de metano diluído com o efluente do reator é comum encontrar déficits construtivos dos reatores, que provocam perdas significativas do biogás. A discrepância entre a captação esperada e a disponível foi objeto da nossa publicação “Resultados do Projeto de Medições de Biogás em Reatores Anaeróbios”, elaborada no âmbito do projeto PROBIOGAS, que foi desenvolvido nacionalmente em parceria entre a Agencia Alemã de Cooperação Internacional (GIZ) e o antigo Ministério das Cidades. A Rotária do Brasil foi consultora nacional deste projeto.
Por mais positivos que sejam os resultados de estudos teóricos é indispensável continuar investigando os custos de operação e manutenção que são relevantes no contexto brasileiro.
Além do aproveitamento do biogás visando a geração de energia elétrica, o aproveitamento térmico do biogás para secagem de lodo apresenta-se como uma solução promissora. Isso se daria por meio da economia relacionada ao manejo de lodos (transporte e disposição final), que dependendo do caso, pode chegar facilmente a centenas de reais por tonelada.
Revista Saneas – Poderia nos falar também sobre as soluções para aproveitamento do lodo e da água de reúso?
Sebastian Rosenfeldt – Além do biogás, uma ETE gera outros subprodutos com potenciais de aproveitamento, como os efluentes tratados e os lodos (também chamados de biossólidos). O reúso desses subprodutos do saneamento atende aos princípios do desenvolvimento sustentável, pois transforma resíduos em recursos, tanto do ponto de vista ecológico quanto econômico.
Um dos grandes desafios para o reúso em grande escala de efluentes tratados e biossólidos , gerados em ETEs municipais, é a distância entre o local de produção (ETE) e o local de demanda (como a agricultura). Observa-se que para o biogás essa distância não representa um problema já que ele pode ser transformado e reutilizado no próprio local da ETE.
O reúso do lodo de ETEs é regulado atualmente no Brasil pela Resolução CONAMA nº 498, de 2020. Essa resolução substituiu a CONAMA nº 375 de 2006 que limitava, por exemplo, o uso de lodo de classe B até 2012, tornando essa forma de reúso praticamente impossível entre o ano limite e o ano de aprovação da nova resolução, em 2020. A CONAMA Nº 375 estabelecia outras medidas que dificultavam mais do que incentivaram o uso do lodo de ETEs no Brasil.
Entre as empresas que adotam o reúso agrícola de biossólidos de suas ETEs, destaca-se a Sanepar. A empresa iniciou, em 1998, os primeiros estudos sobre o reúso do lodo das ETEs em escala experimental e, desde 2002, promove o reúso no estado do Paraná. Atualmente, 20 % dos lodos das ETEs da Sanepar estão sendo reutilizados na agricultura.
O maior desafio para aumentar a quantidade de lodo de ETEs reutilizado na agricultura é o fato de a demanda agrícola ser concentrada em determinadas épocas e a necessidade de armazenamento do lodo devido ao processo de higienização necessário, que até então era tratado com leitos de secagem e posterior higienização com cal. No entanto, a adoção da nova tecnologia de wetlands de tratamento de lodo, implementada pela Rotária do Brasil em um primeiro projeto na Sanepar tem o potencial de resolver esse desafio, pois oferece o armazenamento do lodo por um período de 10 anos ou mais, e sua retirada exatamente nas épocas de demanda.
O reúso de efluentes tratados não é regulamentado em nível nacional no Brasil. A ABNT NBR 13969 de 1997 fornece orientações iniciais sobre o reúso de efluentes, aplicáveis em nível domiciliar ou comunitário. Devido à crescente escassez de água que afetou vários centros urbanos no Brasil nos últimos anos, os primeiros estados emitiram seus próprios regulamentos:
- São Paulo disciplina o reúso direto não potável de água proveniente de Estações de Tratamento de Esgoto Sanitário para fins urbanos
- Minas Gerais estabelece diretrizes, modalidades e procedimentos para o reúso direto de água não potável proveniente de Estações de Tratamento de Esgotos Sanitários (ETE) de sistemas públicos e privados
- Ceará regula os padrões e condições para lançamento de efluentes líquidos e inclui cinco áreas de reúso, como: fins urbanos, fins agrícolas e florestais, fins ambientais, fins industriais e reúso na aquicultura.
Devido à diversidade do Brasil em comparação com a amplitude do reúso regulado por um único estado, como é o caso do Ceará, é possível imaginar que uma regulamentação nacional talvez pode acabar mais prejudicando do que incentivando o reúso, como ocorreu com o primeiro regulamento de reúso de lodo (CONAMA Nº 375 de 2006). No entanto, é importante mencionar que, mesmo sem regulação, a Sabesp já realizou a maior produção de água de reúso industrial da América do Sul – na ETE ABC – com um bilhão de litros de efluentes tratados por mês destinados ao Polo Petroquímico. Conheça a iniciativa
A Rotária do Brasil, por meio de sua consultoria internacional, trouxe um novo enfoque para o reúso que pode ser interessante também no Brasil: a comercialização de esgoto bruto para fins de reúso. O projeto se realizou no Peru, onde uma empresa agroexportadora investiu na instalação e operação de uma ETE municipal adicional no terreno de uma empresa de saneamento, a fim de produzir sua própria água de irrigação. O projeto trouxe benefícios para a empresa agroexportadora, que passou a ter abastecimento de água de irrigação garantido para os próximos anos; para os pequenos agricultores locais, que ganharam a possibilidade de formalização do uso da água remanescente; para a empresa municipal de saneamento, que conta agora com uma renda anual adicional e mais recursos para financiar melhorias; e para a sociedade e o meio ambiente. Conheça o projeto