O Case de Brasília: é possível fechar os lixões e contratar os catadores como prestadores de serviços públicos?

À frente do SLU – Serviço de Limpeza Urbana do Distrito Federal, a engenheira Heliana Kátia Tavares Campos transformou o Lixão da Estrutural em Brasília em uma unidade de recebimento e tratamento de entulhos e inaugurou o primeiro aterro sanitário da história do Distrito Federal. Foi premiada internacionalmente pela ação.
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“Para uma sociedade considerada civilizada, torna-se incompreensível a existência de lixões em várias cidades brasileiras e do mundo com a presença de catadores e catadoras de materiais recicláveis garimpando o lixo para seu sustento. Isso representa uma barbárie em pleno século XXI”. É o que afirma a engenheira civil e sanitarista Heliana Kátia Tavares Campos, que é mestre em Desenvolvimento Sustentável.

Segundo Heliana, as desigualdades sociais, regionais e nacionais entre poder de consumo, evidenciam a falência deste aspecto do modelo capitalista. “Não há, por exemplo, constrangimento por grande parte da sociedade no uso sem parcimônia dos recursos naturais, da energia, de bens de consumo, em contraposição à carência absoluta de bens e serviços de substancial parcela da população mundial, desassistida com necessidades básicas não supridas”, avalia.

“Esta dicotomia pode ajudar na compreensão do tipo de sociedade que nos tornamos, nos permitindo convivência pacífica com os lixões, catadores e catadoras ali trabalhando em condições”, complementa.

A palavra sociedade vem de dois termos latinos, a ideia de SOCIUS – parceiro ou companheiro – e SOCIETA – associação de amigos. Portanto, propicia uma convivência entre sujeitos que se identificam em diversos grupos comunitários com interrelações complexas e interesses distintos, gerando este desconcerto de propósitos e disparidades extremas, deixando de ser uma associação de amigos ou de companheiros para ser individualista.

Um case de sucesso

Neste contexto, dentro da naturalização universal de desigualdades extremas, Brasília conviveu por mais de 5 décadas com um lixão considerado o segundo maior do mundo (ISWA 2014) com mais de 1.000 catadores sobrevivendo da catação e comercialização dos resíduos e o que há de mais moderno e belo no planejamento urbano e na arquitetura mundial.

“Tanto a perpetuação do lixão do Distrito Federal em período tão longo assim como o desafio para  seu encerramento deve ser considerada sob a responsabilidade do conjunto de seus habitantes e das diversas representações sociais. A tomada de decisão que finalmente viabilizou seu fechamento, considerado como a saída da barbárie, no período de 2015 a 2018, se deu quando o chefe do executivo distrital Governador Rodrigo Rollemberg chamou para si a coordenação do processo, que dependeu de um amplo debate na capital federal priorizando recursos humanos e financeiros para vencer o desafio”, relembrou Heliana.

A mestre em Desenvolvimento Sustentável também foi dirigente do SLU DF durante o processo de encerramento do lixão, que foi concluído em 2018. O SLU é uma autarquia do governo do Distrito Federal e tem como finalidade a gestão da limpeza urbana e do manejo dos resíduos sólidos urbanos.

Na época, em virtude de sua gravidade e complexidade, foram envolvidas diversas áreas técnicas de 17 órgãos públicos distritais, de controle ambiental e de defesa dos direitos, das lideranças e dos próprios catadores que ali trabalhavam. Houve ainda diferentes tipos de envolvimentos, da academia, da imprensa, da comunidade do entorno do lixão, do legislativo e executivo distritais e do ministério público.

“Esta participação ampla, constante, algumas vezes tumultuada mais fundamentais fez com que fossem finalmente interrompidas as atividades ilegais do antigo lixão que foi transformado em uma Unidade de recebimento e processamento de resíduos da construção civil dando de forma efetiva utilidade à área de mais de 200 hectares para evitar riscos pelo seu uso inadequado”, relembra Heliana.

Assim, foram viabilizadas Instalações de Recuperação de Resíduos e realizados 28 contratos com mais de 1.000 catadores organizados em associações e cooperativas para a realização da coleta seletiva e o manejo dos resíduos recicláveis para sua reintrodução ao processo produtivo.

Portanto, foi possível o fechamento do lixão, a inauguração do primeiro Aterro Sanitário do Distrito Federal e a contratação dos catadores como prestadores de serviços públicos distritais. Em 2017, Brasília recebeu o Prêmio Latino-Americano ao Bom Governo Local pela desativação do Aterro do Jóquei, também conhecido como Lixão da Estrutural.

Já em 2018, o SLU recebeu mais uma homenagem: um certificado de reconhecimento do lixão da Estrutural como o único, no ranking dos 50 maiores lixões do mundo elencados pela Associação Internacional de Resíduos Sólidos (ISWA), que conseguiu ser definitivamente fechado. A premiação foi realizada durante o jantar de gala do Congresso Mundial da associação.

De olho no futuro

Ainda assim, segundo a especialista, a construção coletiva do modelo implantado inclusive com o acompanhamento de entidades internacionais firmadas no “Compromisso por Brasília” pode colaborar em muito para que esta situação não se reverta, mas não garante sua continuidade.

“Porém, a manutenção dos programas implantados, como da ampliação da coleta seletiva e o manejo dos recicláveis com a contratação das organizações de catadores de materiais recicláveis, seu aperfeiçoamento e ampliação de forma adequada, depende de um constante e contínuo acompanhamento e controle social”, avalia Heliana.

“Não há dúvidas sobre a urgência na execução do processo participativo do encerramento dos lixões, na disposição adequada dos rejeitos em aterros sanitários, inclusive regionalizados e a ampliação da coleta seletiva por meio da contratação de organizações de catadores com a adequada contratação e correspondente remuneração como prestadores de serviços públicos no manejo dos resíduos recicláveis conforme previsto em lei”, finaliza.

Matéria complementar da edição 85 da Revista Saneas – Especial Resíduos Sólidos