Wetland: opção sustentável e ambientalmente amigável para o tratamento do esgoto

A diretora de projetos de pesquisa e qualidade da Rotária do Brasil, Dra Heike Hoffmann, aborda os sistemas de tratamento de esgoto de pequeno porte, seus avanços e desafios, tecnologias aplicadas e, em especial, as wetlands e sua implementação no país. A Rotária do Brasil, vem operando Estações de Tratamento de Esgoto de pequeno porte e de diferentes tecnologias há mais de 20 anos e possui cerca de 40 projetos de wetland de tratamento de efluente e de lodo implementados. Além disso, a empresa participou também de projetos de wetlands em outros países e é parceira do Global Wetland Technology - consórcio de empresas especialistas em wetlands que engloba pesquisadores e empresas de 10 países. Abaixo, a entrevista completa.
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SANEAS EDIÇÃO 83 ESPECIAL ÁGUAS RESIDUAIS
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Revista Saneas – Quais os sistemas de pequeno porte em uso atualmente no Brasil?

Heike Hoffmann – A demanda por ETEs de pequeno porte, atualmente, está em ascensão. Neste contexto, a expressão “pequeno porte” se refere, geralmente, às ETEs instaladas em cidades menores – onde ainda não existem soluções de saneamento básico ou não apresentam mais a performance necessária. Entretanto, nas grandes cidades, o surgimento de novos bairros, condomínios e parques residenciais também tem demandado a instalação de ETEs próprias. Além disso, surgem novos empreendimentos, como shopping centers, parques comerciais e industriais, hospitais, campus universitários, áreas de lazer, hotéis, restaurantes, marinas e, finalmente, conjuntos habitacionais rurais ou semi-rurais com residências afastadas umas das outras. Nestes casos, a instalação de uma ETE própria se torna obrigatória. Consequentemente, o atendimento de ETEs de pequeno porte pode variar de 10 pessoas até vários milhares. As companhias de serviço de saneamento no Brasil, por exemplo, contam como pequeno porte as ETE que atendem até 60 L/s (< 30 mil habitantes).

Assim como o range de atendimento, as tecnologias aplicadas também são bastante amplas – sendo as mais básicas as fossas sépticas e filtros anaeróbios ou a sua modificação como ABR (Anaerobic Baffled Reactor), mas também se aplicam reatores anaeróbios como UASB e reatores de tratamento aeróbio, sejam filtro percoladores, reatores de lodos ativados e até reatores ainda mais sofisticados. Além disso, existem tecnologias que têm ganhado importância especialmente nessa realidade devido à sua alta eficiência, operação segura e robustez, como os sistemas wetlands de tratamento e os reatores sequenciais em batelada (SBR).

Revista Saneas – Quais os avanços e desafios em sistemas de pequeno porte?

Heike Hoffmann – O amplo escopo implica uma série de desafios, incluindo questões relacionadas à responsabilidade pelas ETEs que se desenvolvem sem participação do município ou de suas empresas de serviço de saneamento. Além disso, é preciso cuidado com os pequenos municípios que não possuem competência técnica ou poder econômico para investir em infraestrutura e escolher a tecnologia apropriada, bem como para manter as medidas de operação das ETEs.

Outro desafio importante consiste na organização de controle da eficiência de várias pequenas ETEs em uma determinada região, o que pode gerar obstáculos logísticos e econômicos junto aos órgãos responsáveis. Um avanço significativo nesse sentido foi a inclusão das categorias de estações de tratamento de esgoto (ETE) nas mais recentes resoluções estaduais que estabelecem os padrões de emissão de efluentes de maneira diferenciada de acordo com o tamanho da ETE (exemplo Resolução CONSEMA 181/182 de 2021 em Santa Catarina). Essa é uma condição importante para incentivar a implementação de ETEs de pequeno porte, garantir conformidade legal e orientar na escolha da tecnologia apropriada.

Por fim, é importante mencionar a área técnica, na qual temos muita experiência, uma vez que nossa empresa, a Rotária do Brasil, vem operando ETEs de pequeno porte de diferentes tecnologias há mais de 20 anos. É fundamental destacar que o esgoto a ser tratado em uma ETE de pequeno porte, ou seja, coletado numa área relativamente pequena de atendimento, difere do esgoto das grandes ETEs – que é considerado como “esgoto típico”.

O esgoto que chega à ETE menor, tem características muito mais unilaterais que podem afetar sua composição e concentração e, além disso, possuem variações incomuns de vazão com picos extremos durante certas horas do dia, por exemplo. Quanto menor a ETE, maior são os picos de vazão, que podem ser acompanhados por períodos com baixa ou nenhuma contribuição de esgoto, podendo durar horas, dias ou até mesmo serem mais expressivos em certas épocas do ano. Existem tecnologias que são mais sensíveis a essas variações hidráulicas, como o lodo ativado de fluxo contínuo e o UASB. De acordo com nossa experiência, são essas tecnologias “compactas” que para a realidade de ETEs de menor porte não conseguem manter qualquer biomassa.

Por outro lado, existem tecnologias com elevada capacidade de absorver variações hidráulicas, principalmente as tecnologias de soluções baseadas na natureza SBN (lagoas e wetlands de tratamento) e as tecnologias operadas de forma sequencial (como o SBR e os tipos de wetlands de tratamento de fluxo vertical).

Revusta Saneas – Como funcionam os wetlands e para quais locais são indicados?

Heike Hoffmann – Os wetlands imitam as funções de auto-depuração de pantanais naturais, que consistem na capacidade de filtração física (retenção de sólidos) e biológica (degradação pelas bactérias) acompanhada pela adsorção química ou biológica de certos componentes. As macrófitas (plantas aquáticas) contribuem para a eficiência do sistema especialmente através de suas raízes, que mantém a porosidade do filtro, drenam os efluentes e fornecem condições complementares para o desenvolvimento de biofilmes que estão sendo formados pelas bactérias. De forma corretamente dimensionada e operada dominam no wetland os processos aeróbios de degradação completa, produzindo efluentes totalmente clarificados inclusive quando se se trata de efluentes com substâncias de difícil degradação.

Fazem parte das “Soluções Baseadas na Natureza” (SBN) e se destacam como uma opção sustentável e ambientalmente amigável para o tratamento do esgoto, pois tem alto potencial de eficiência com operação relativamente simples, econômica e segura, além de proporcionar outros benefícios ambientais, como a promoção da biodiversidade e a opção da integração paisagística de tratamento que pode levar a uma maior atenção e participação pública.

O wetland de tratamento é uma solução indicada para responder às altas exigências de eficiência e, especialmente, situações que são caracterizadas pelas variações de vazões e/ou cargas, sendo necessária área suficiente para sua instalação. Desta forma, é indicado tanto para áreas rurais e suburbanas, nas quais o espaço é amplo e os custos e esforços técnicos de operação de sistemas convencionais de tratamento de esgoto são impeditivos; como também para situações em áreas urbanas, desde que haja espaço disponível para a construção do sistema. Confira as principais tecnologias de wetlands de tratamento, com esquemas e descrições http://brasil.rotaria.net/tecnologias/wetland/

Revista Saneas – O que impede a realização de wetland em escala no Brasil?

Heike Hoffmann – No setor de saneamento ainda falta conhecimento sobre os potenciais reais das tecnologias “wetland” e seu potencial concreto em contribuir para solucionar as exigências atuais.  Por um lado, os wetlands podem ser vistos como “tecnologia descentralizada”, com a tendência de interpretar somente como “solução domiciliar”, mas não como componente de uma ETE municipal, por exemplo.  Por outro lado, a imagem de “alternativa verde” atrai a promoção popular, mas traz o risco de criar expectativas não reais, de que solucionaria tudo, mesmo sem os investimentos que as soluções “convencionais” requerem, sem necessidade de operação, etc. Além disso, projetos mal dimensionados, mal operados ou simplesmente executados de forma “econômica demais”, podem ter desvalorizado, em certas regiões, o reconhecimento da tecnologia.

Mas a situação está mudando, especialmente porque as Soluções Baseadas na Natureza e os wetlands têm despertado cada vez mais interesse, inclusive entre companhias estaduais e municipais de serviço de saneamento. No entanto, vale a pena estar ciente destas questões. É especialmente importante notar que os projetos de wetlands, como qualquer outra tecnologia de tratamento, precisam de conhecimentos de engenharia sanitária, tanto na concepção, construção, mas também para a operação.

Wetland de tratamento são ETEs ou componentes de uma ETE e devem ser projetados, instalados e operados considerando todos os conceitos que valem para a área de saneamento. Além disso, experiências e estudos de longo prazo são necessários para entender os processos “baseados na natureza” e assim aproveitar seu potencial.

É semelhante às lagoas de tratamento, em que ninguém vai tirar conclusões sobre o projeto após apenas 12 meses de operação e ainda de pilotos em uma escala miniatura. Mas, no caso de wetlands, muitas publicações se baseiam em períodos de estudo muito curtos e pilotos muito pequenos e acabam realizando promessas muito otimistas em relação ao dimensionamento. Ou seja, precisamos ter cuidado para que o atual interesse não se transforme em decepção, devido a projetos que são baseados em pouca experiência.

Revista Saneas – Qual a situação dessa tecnologia hoje no Brasil? Há cases de sucesso no uso no país?

Heike Hoffmann – Entre as variações de wetlands, as mais utilizadas são as Wetland de Escoamento Vertical (WTV) -Tratamento de efluentes pré-tratados, que podem atender entre 10 e 2.200 habitantes equivalentes e já estão bem difundidas no Brasil.

Mas, considerando a demanda atual para o tratamento de esgoto de pequenos municípios, vemos um potencial expressivo para a tecnologia de  Wetland tipo Fito Filtro Francês (WTFF) – Tratamento de esgoto bruto (efluentes e sólidos).

Além das wetlands que tratam efluentes, tanto esgotos brutos quanto pré-tratados, a  Tecnologia de Wetland de tratamento de lodo – lodo da ETE e lodo séptico etc. Também tem um grande potencial para fazer parte de projetos de saneamento em municípios. A Rotária do Brasil já implementou cinco wetlands de tratamento de lodo para ETEs no Brasil, sendo que o maior deles serve para uma ETE de grande porte, com capacidade de 300 L/s. Ele é composto por 14 canteiros que ocupam uma área de 25.424 m². Esses projetos têm proporcionado uma solução econômica, segura e eficiente para o tratamento de lodos no local da ETE, sem necessidade de insumos químicos, nem de manipulação de lodo durante os 10 ou mais anos da sua permanência.

O Wetland de tratamento de lodo também pode fazer parte de um novo conceito de saneamento básico chamado “Saneamento Sobre Rodas”, que consiste em um serviço organizado de coleta de lodo de tanques sépticos em uma determinada região, oferecendo um serviço seguro e econômico para todos os usuários que não podem ser atendidos com rede pública e ETE centralizada.

Em 2004, a Rotaria do Brasil realizou o primeiro projeto com um Wetland de lodo para o município de Palhoça/SC, se instalaram na época 2 reatores SBR (15 L/s) e 4 canteiros de wetland de lodo (total 2.320m²) com capacidade de tratar tanto o lodo do SBR quanto o lodo do serviço de limpa fossa, atendendo a mesma região. A ETE ainda é operada pela Rotária, e a primeira retirada de lodo de dois canteiros foi realizada após 15 e 16 anos de operação. Saiba mais em https://www.linkedin.com/feed/update/urn:li:activity:7010605522227761153/

Finalmente, tanto o Wetland de tipo Fito Filtro Francês quanto o Wetland de tratamento de lodo são tecnologias inovadoras para melhorar a situação de saneamento municipal. Apesar dos benefícios que proporcionam individualmente, eles ainda têm um grande potencial de serem utilizados na modernização de sistemas antigos de lagoas de tratamento. Uma das grandes vantagens dos sistemas de lagoas existentes é que eles reservaram a área necessária para a implementação das mais novas e eficientes tecnologias de wetlands.

Neste contexto, ambas as tecnologias – tanto para o tratamento de esgoto bruto quanto para o lodo gerado por outras tecnologias – garantem maior capacidade, eficiência elevada de tratamento e operação econômica e segura, características essenciais para atender às demandas dos pequenos municípios.